Sobre pais e filhos: por que pessoas que deveriam se amar machucam tanto umas às outras?
“As famílias felizes são todas iguais; mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, talvez seja uma das mais famosas frases de Tolstoi e a que melhor sintetiza a maior parte das sagas familiares na literatura, geralmente marcadas pela infelicidade de se viver em um ambiente marcado pela indiferença, pelo desprezo ou pela violência em um núcleo que contradiz a premissa de que a família representa amor, afeto, respeito e segurança.
Então refaço a pergunta que dá título a este texto: por que pessoas que se amam, ou que supostamente deveriam se amar, machucam tanto umas às outras?
Não é fácil de encontrar a resposta certa para essa pergunta, e provavelmente cada caso deva ser analisado em particular. Sabemos que a família é uma das instituições que moldam os comportamentos de seus membros para que se adequem aos valores sociais, religiosos, etc. vigente da época, que insere a pessoa dentro de uma cultura. E este processo de inserção, em uma tentativa de que todos se adaptem às expectativas familiares, muitas vezes se dá de forma coercitiva, potencialmente violenta ou abusiva. Os primeiros traumas que carregamos são os traumas da infância ou da adolescência.
As mulheres costumam ser as mais vulneráveis à violência doméstica, convivendo ainda com um fantasma mais assustador que o abuso moral e tão traumatizante quanto a agressão física: o abuso sexual. Segundo a literatura especializada, uma em cada quatro meninas (contra um em cada dez meninos) é vítima de violência sexual antes de completar 18 anos, e essa violência ocorre majoritariamente no núcleo familiar, sendo o pai biológico ou o padrasto os principais perpetradores, mas não os únicos: muitas vezes pode ser um vizinho ou amigo íntimo da família, um padrinho, um tio, um primo e, mais raramente, até o próprio irmão. Durante a minha adolescência, tive uma amiga que aos oito anos de idade havia sido sexualmente abusada pelo irmão de dezesseis. Ela nunca contou nada à mãe ou qualquer outro familiar, e para lidar com o fato, procurava encarar o abuso como uma travessura de uma pessoa que não sabia direito o que estava fazendo. Mas não conseguia se sentir bem dentro da própria casa, e dormia com o cobertor por cima dos quadris como uma forma de se sentir mais segura.
Segundo este estudo publicado em 2005, que aponta que o abuso intrafamiliar ou incestuoso acontece mais comumente em famílias que apresentam relações interpessoais assimétricas e hierárquicas nas quais há uma desigualdade e/ou uma relação de subordinação,
“O abuso sexual intrafamiliar é desencadeado e mantido por uma dinâmica complexa. Tal dinâmica envolve dois aspectos que se apresentam interligados: a "Síndrome de Segredo", que está diretamente relacionada com a psicopatologia do agressor (pedofilia) que, por gerar intenso repúdio social, tende a se proteger em uma teia de segredo, mantido às custas de ameaças e barganhas à criança abusada; e a "Síndrome de Adição" caracterizada pelo comportamento compulsivo do descontrole de impulso frente ao estímulo gerado pela criança, ou seja, o abusador, por não se controlar, usa a criança para obter excitação sexual e alívio de tensão, gerando dependência psicológica e negação da dependência (Furniss, 1993). Além disso, outras formas de violência intrafamiliar podem estar associadas com o abuso sexual. Muito comumente, as crianças e adolescentes vítimas de abusos sexuais no contexto familiar são também vítimas de negligência, abusos emocionais e físicos. Isto se confirma através dos relatos das vítimas que revelam as ameaças e agressões físicas sofridas durante o abuso sexual, bem como as sentenças depreciativas utilizadas pelo agressor e a falta de amparo e supervisão dos cuidadores (De Antoni & Koller, 2000a; Habigzang & Caminha, 2004; Koller, 1999).”
Dessa maneira, quando casos de abuso sexual intrafamiliar e casos de terríveis agressões físicas vem à tona, não é incomum que as pessoas perguntem: mas e a mãe? Onde estava a mãe (nos casos em que há uma mãe) que não viu o que estava acontecendo com suas filhas ou seus filhos? No mesmo estudo é salientado que “a mãe é a pessoa mais procurada na solicitação de ajuda e a maioria dos casos é revelada pelo menos um ano depois do início do abuso sexual”, mas é bom lembrar que isso se refere aos casos em que a mãe é, de fato, procurada. O mais comum é que a criança ou o/a adolescente silencie sobre os abusos e agressões, de forma que aquela mulher que não enxergou um potencial agressor em seu parceiro ou outro homem da família, não venha a suspeitar do que acontece em sua ausência. Também vale mencionar que em nossa sociedade a violência física e psicológica é normatizada, e temos a tendência a crescer achando normal sermos educados à base de gritos e palmadas, dentro de hierarquias nas quais ainda é comum que homem seja “o chefe” da família. Dessa maneira, como culpabilizar uma mulher por não enxergar possíveis sinais de alerta de um agressor que faz parte de sua família?
Quando culpamos a mãe pelas agressões sofridas pelos filhos, estamos não apenas deixando de questionar a responsabilidade do pai e de outros cuidadores, mas também culpando uma potencial vítima indireta. Pior ainda: estamos deixando de responsabilizar o maior (e muitas vezes único) culpado: o agressor.
Mas é claro, não podemos ser ingênuos de imaginar que as mães são seres inocentes todo o tempo, incapazes de ser cúmplices ou agressoras de seus filhos – muitos relatos pessoais já deram conta de que o amor incondicional materno é um mito em determinadas famílias. Sabemos que o amor materno muitas vezes é construído e o último Desafio da Maternidade proposto através do Facebook mostrou como muitas mães vivem uma luta interna entre amar o filho e não curtir a maternidade, entre a pressão interna e externa para ser onipresente, dar conta de tudo, se desdobrar em jornadas triplas e ainda manter o sorriso no rosto. Algumas mães, infelizmente, não conseguem. Outras, não querem mesmo. E enquanto muito se discute o papel e o lugar da mãe na sociedade, e os movimentos feministas tentem mostrar que nem tudo são flores, ainda é pouco o enfoque que se dá à criança enquanto sujeito autônomo, com direitos a serem respeitados e assegurados não apenas pelos familiares, mas por toda a sociedade.
Quando uma pessoa diz “não gosto de criança”, como quem diz “não gosto de animais”, o quanto de negligência e, expandindo o olhar, de violência implícita pode caber nessa afirmação? Note que não querer ter filhos e não saber conviver com crianças é uma coisa diferente de não gostar de um determinado grupo social (e muitas vezes a frase deixa de ser aceitável quando trocamos os sujeitos). As crianças são parte de um dos grupos mais vulneráveis da sociedade, sujeitas a agressões diversas quando não ao abandono. Em uma época em que se fala tanto na “importância da família”, muitas vezes com noções limitadas sobre o que uma família de fato significa, o quanto estamos investindo no desenvolvimento emocional saudável de crianças que um dia se tornarão adultos e também pais?
Renata Arruda é jornalista de cultura e especialista em mídias socais. Mantém
um blog sobre livros no Huffington Post Brasil e assina o Prosa Espontânea.
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