Sobre crenças e irresponsabilidade
No ano passado, a revista The New Yorker publicou uma interessante e perturbadora matéria sobre como Megan Phelps-Roper, uma das filhas dos fundadores da Igreja Batista de Westboro, instituição da extrema direita cristã conhecida por suas mensagens de ódio contra homossexuais, começou a questionar sua fé depois de passar a representar a igreja no Twitter e ficar famosa por isso. Uma das primeiras mensagens da moça na rede social foi um agradecimento a Deus pela Aids: "Vocês não irão se arrepender dessa rebeldia que trouxe a indignação Dele em forma dessa peste, então esperem por mais & pior!", foi sua mensagem no Dia Mundial de combate à doença. Todo o princípio da instituição se baseia na crença de que "todas as pessoas nascem depravadas, e somente poucos escolhidos poderão ser salvos do Inferno". Seu fundador, Fred Phelps, acreditava que o Cristianismo atual não passa de uma versão pervertida da Bíblia - para ele, Deus odiava todos aqueles que pecam e não se arrependem, todas as celebridades que versam sobre liberdade sexual e todos os políticos que "permitem que os Estados Unidos se transformem em uma Sodoma e Gomorra moderna".
ASSISTA ESTA QUARTA, 17, ÀS 22H, EXORCISMO ADOLESCENTE , NO LIFETIME MOVIES.
O fanatismo religioso foi tão longe ao ponto dos fiéis de Westboro protestarem nos funerais dos soldados mortos no Iraque e no Afeganistão - e não contra o terrorismo, como alguém poderia imaginar, mas celebrando a morte desses homens. Para Phelps, o atentado às Torres Gêmeas foi um castigo de Deus contra a aceitação da homossexualidade nos Estados Unidos e, o que era pior ainda para ele, em vez de "se arrependerem", os americanos estavam celebrando seu patriotismo mais do que nunca. Então os protestos nos funerais se trava disso: alertar aos americanos de luto que Deus estava matando seus soldados como uma forma de alerta. Esta história resume bem as motivações da Westboro: comemoram cada tragédia na crença de que aqueles considerados infiéis irão despertar para "a vontade de Deus". E foi ao perceber a crueldade contida nessa visão deturpada da realidade que Megan passou a se questionar.
Em maior ou menor grau, quem não conhece fanáticos religiosos, não é mesmo? O fanatismo e a idolatria já foram o tema desta coluna na semana passada,e sendo o fanatismo religioso um assunto pra lá de espinhoso, não pretendo tratar disso por aqui. Comentei sobre a história acima porque, entre as dezenas de outros assuntos sobre os quais ela provoca uma discussão (vale a pena ler a matéria toda), ela me remeteu à facilidade que nós temos em nos deixar envolver e convencer pelas crenças mais obscuras, chegando ao ponto de fazer diversas besteiras - das inofensivas a outras mais graves -, na convicção de que não só sabemos o que estamos fazendo, mas sabemos mais e melhor que os outros. Até que cai a ficha.
Quando eu estava no início da adolescência, li Brida, livro de Paulo Coelho sobre uma mulher descobrindo o sagrado feminino, a magia e a bruxaria. Se me lembro bem, a mestra de Brida se chamava Wicca e eu fiquei tão fascinada com a história, e era tão ingênua a ponto de achar que essa pessoa chamada Wicca poderia existir de verdade, que fui pesquisar na internet para saber quem era. Descobri que era uma espécie de religião - uma seita religiosa baseada no paganismo europeu. Daí foi um pulo: comecei a ler blogs genéricos sobre "bruxaria" e me tornei uma assídua frequentadora da sala de bate-papo sobre o tema no chat da Uol. Sim, isso faz muito tempo.
Eu não sei explicar muito bem o que me atraía. Eu havia sido criada frequentando a igreja católica, mas desde cedo não entendia como funcionava a dinâmica "Deus é amor" X "Deus vai te castigar". Quando quis fazer catecismo, aos treze anos, fiquei perplexa com o catequista fazendo críticas a homossexuais e a protestantes, os primeiros como pecadores e os segundos como iludidos. Eu estava em uma fase de conhecer e admirar a cultura hippie e todo o misticismo que vinha a reboque e talvez uma forma de religião inclusiva e misteriosa, que buscava se conectar com a natureza e o feminino, tenha atingido em cheio os meus anseios adolescentes por encontrar uma forma de lidar com a espiritualidade que fizesse sentido. Não era uma questão de rebeldia adolescente, eu achava que as grandes religiões deturpavam o sentido de Deus, que as instituições eram mesquinhas e que as pessoas que estudavam ou praticavam o paganismo sabiam de algo que as outras não sabiam. E eu queria aprender também.
Através do chat, conheci um homem que se propunha a ser o que chamam de mestre. Ele estava montando um grupo de interessados em aprender sobre paganismo e magia e iniciar aqueles que estivessem prontos, quando a hora chegasse. Comecei a frequentar as reuniões, que aconteciam em um bosque da cidade, com meu melhor amigo na época e não acontecia nada de mais: exercícios de meditação, esclarecimentos de dúvidas, teorias diversas, treinamento de paciência e concentração, sugestão de rituais a se fazer em casa. Um dia nós fomos convidados a ir a um grande ritual nos arredores da Colônia Juliano Moreira, antigo hospital psiquiátrico. Quem conduziria a cerimônia seria a mestra deste mestre, uma mulher curiosa que, de fato, parecia uma bruxa: a casa dela tinha um forte cheiro dos gatos que viviam ali, era atulhada de apetrechos espirituais e ela usava roupas diferentes e um longo cabelo vermelho. Ela tinha uma fala etérea. Já era uma mulher idosa na época, não sei se ainda está viva.
Quando chegamos ao local, tive um choque de realidade. Diferente do que eu imaginava, tudo parecia comicamente um grande teatro: pessoas muito bem vestidas para uma cerimônia religiosa noturna no meio do mato, uma grande mesa cheia de quinquilharias provavelmente compradas em qualquer lojinha mística do centro da cidade (incluindo um hilário crânio de plástico), a grande bruxa lendo suas falas em um papel, a gente tendo que acender uns incensos e colocar umas fitinhas nas árvores. Tudo parecia tão mambembe e até infantil que eu comecei a me perguntar o que estava fazendo ali e o quanto poderia, ou deveria, levar a sério qualquer uma daquelas pessoas. Percebi que estava sendo ingênua e iludida e que nada daquilo fazia sentido para mim. Foi a partir dessa experiência que resolvi romper não apenas com essa crença religiosa, mas com qualquer uma.
A experiência foi reveladora também em outros aspectos: como eu passava madrugadas inteiras nos chats de discussão, tendo uma verdadeira ilusão de "proximidade" com aquelas pessoas - mais ou menos da mesmíssima forma que vejo acontecer hoje com os chamados hard users do Twitter -, eu me dei conta do quanto havia me colocado em situações potencialmente arriscadas nessa minha busca pela espiritualidade e por desvendar o que, do alto dos meus quinze anos, eu achava que eram grandes mistérios. Eu entrei em um relacionamento com um rapaz perturbado que acreditava que um fantasma morava no banheiro do seu apartamento. Eu ia para bosques com pessoas completamente desconhecidas. Uma das situações mais irresponsáveis nas quais já me meti foi quando fugi de casa à noite para cruzar a cidade e encontrar alguns "amigos" na porta de uma boate em Copacabana. Acabei passando a noite no apartamento de uma mulher que acordou transtornada durante a madrugada, vendo coisas e pessoas falando com ela.
Todas essas histórias não duraram mais que alguns meses e, para a minha sorte, se mostraram inofensivas, de forma que eu costumo contá-las em tom de comédia para os meus amigos. Mas hoje eu penso que, fossem as minhas convicções mais fortes, eu poderia jamais ter retornado desta viagem, assim como acredito que muitas pessoas que conheci durante esse tempo não fizeram o caminho de volta.
Renata Arruda é jornalista de cultura e especialista em mídias socais. Mantém
um blog sobre livros no Huffington Post Brasil e assina o Prosa Espontânea.
TWITTER: @renata_arruda
INSTAGRAM: prosaespontanea