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A gordofobia mata, alerta jornalista Jéssica Balbino que teve o muro da casa pichado por ser gorda

Momento Lifetime
Por Lifetime Brasil el 23 de July de 2022 a las 00:30 HS
A gordofobia mata, alerta jornalista Jéssica Balbino que teve o muro da casa pichado por ser gorda-0

Às vezes julgamos os outros somente pela aparência. A jornalista Jéssica Balbino, que teve o muro de sua casa pichado pelo simples fato de ser gorda, sabe muito bem como é isso e nos conta como a gordofobia pode matar. Ela também nos lança a seguinte reflexão: por que diabos alguém colocou na nossa cabeça que ser MAGRA (para não dizer esquelética) é ser bonita?

Na última semana, o muro da frente da casa da jornalista, em Poços de Caldas (MG), amanheceu pichado com os dizeres "Jessica gorda". O caso ganhou grande repercussão nas redes sociais assim que ela divulgou a imagem da pichação no seu perfil no Facebook.  A foto foi acompanhada de uma bela resposta da jornalista, que foi amplamente compartilhada. Sua história virou matéria em vários portais e ganhou destaque em sites no Chile, Argentina e Equador.

A gordofobia mata, alerta jornalista Jéssica Balbino que teve o muro da casa pichado por ser gorda - 1

Em entrevista ao Canal Lifetime, Jéssica sabe que quem pichou o muro da sua casa usou a palavra "gorda" para agredi-la:

"É difícil pensar nisso, porque em primeiro lugar, quem pichou o muro quis me agredir. Em segundo lugar, quis me rebaixar, quis me ofender, quis que eu me sentisse mal. De alguma forma, essa pessoa foi violenta, mas se escondeu atrás de um muro e de uma lata de spray. Penso que o único motivo que pode ter provocado isso tem a ver com minha militância e meu posicionamento. Eu brado muito contra a gordofobia e o machismo. Certamente, tem alguma ligação."

Jéssica lida com o preconceito diariamente e também com várias dificuldades impostas aos gordos na nossa sociedade. A gordofobia não é crime, mas, para a jornalista, ela mata muita gente.

"Muita gente se mata por causa da gordofobia, muita gente se mata por causa do preconceito. Pessoas gordas são hostilizadas e excluídas o tempo todo".

"As opressões são muitas, a roleta dos ônibus e as catracas do metrô são estreitas, as poltronas dos ônibus e aviões também, e, neste último, se você precisa de mais espaço, tem que pagar a mais por ele, assim como por roupas maiores. As pessoas são gordas, não ricas, e ninguém pensa nisso".

A jornalista nos convida a fazer uma reflexão sobre como usamos as palavras:

"Uma coisa que me incomoda muito e que eu quis trazer pra essa discussão é o fato de que não podemos aceitar mais a palavra GORDA como ofensa, nem a palavra MAGRA como elogio. São adjetivos de características, mas usar isso para definir se a pessoa é bonita, se ela tem caráter e se ela pode ou não conviver em sociedade é ultrajante."

Leia abaixo a entrevista completa de Jéssica ao Lifetime:

A gordofobia mata, alerta jornalista Jéssica Balbino que teve o muro da casa pichado por ser gorda - 2Foto: Luciana Faria

Lifetime: Por que você acha que alguém pichou o muro da sua casa?
Jéssica: É difícil pensar nisso, porque em primeiro lugar, quem pichou o muro quis me agredir. Em segundo lugar, quis me rebaixar, quis me ofender, quis que eu me sentisse mal. De alguma forma, essa pessoa foi violenta, mas se escondeu atrás de um muro e de uma lata de spray. Penso que o único motivo que pode ter provocado isso tem a ver com minha militância e meu posicionamento. Eu brado muito contra a gordofobia e o machismo. Certamente, tem alguma ligação.

Lifetime: Você tem ideia de quem pode ter feito isso?
Jéssica: Talvez. Mas já registrei uma ocorrência e a polícia está fazendo o trabalho dela.

Lifetime: A gordofobia não é crime, mas quem é gordo sofre várias limitações praticas no seu dia a dia e isso por até "matar aos poucos" em vários aspectos. Como mudar isso?
Jéssica: É uma pergunta difícil, porque a gordofobia mata. Se no meu lugar estivesse uma mulher que não se sente empoderada, isso causaria danos irreversíveis. Muita gente se mata por causa da gordofobia, muita gente se mata por causa do preconceito. Pessoas gordas são hostilizadas e excluídas o tempo todo, vai desde uma loja de departamentos em que nunca tem a numeração necessária e, quando tem o que chamam de ‘plus size’ ou ‘tamanhos especiais’ (especiais pra quem?), eles vão até o 54, o que significa que se a pessoa for maior que isso, ela não tem como se vestir. Ou ela emagrece, ou ela é invisibilizada. E as opressões são muitas, a roleta dos ônibus e as catracas do metrô são estreitas, as poltronas dos ônibus e aviões também, e, neste último, se você precisa de mais espaço, tem que pagar a mais por ele, assim como por roupas maiores. As pessoas são gordas, não ricas, e ninguém pensa nisso. Pessoas gordas têm dificuldades em se sentar em bares e restaurantes, fechar o cinto do carro e do avião, comer em público sem ser alvo de chacotas e mais, lidar com a hostilização diária, com as comparações: sofro por ser magro, entre outras coisas. Uma coisa que me incomoda muito e que eu quis trazer pra essa discussão é o fato de que não podemos aceitar mais a palavra GORDA como ofensa, nem a palavra MAGRA como elogio. São adjetivos de características, mas usar isso para definir se a pessoa é bonita, se ela tem caráter e se ela pode ou não conviver em sociedade é ultrajante.

Para mudar isso, eu acho que é como qualquer outro processo de desconstrução. A gente tem que olhar pra si e perguntar: eu reproduzo a gordofobia? Por que ela é sutil, sabe? Ela está no olhar que você dá pra uma pessoa gorda na rua, está numa frase quando você diz: você tem o rosto bonito, por que não emagrece? Quando você fala: gorda assim, nenhum homem vai te querer, quando você é magra, mas fala: preciso emagrecer, estou barriguda, entre outras coisas, que mostram que você não aceita pessoas gordas ao seu redor. São infinitos exemplos, eu ficaria horas listando, mas acho que a gente tem que simplesmente PARAR de patrulhar o corpo alheio, de usar discurso de preocupação com a saúde para camuflar a gordofobia, de achar que as pessoas gordas são doentes, preguiçosas, entre outras coisas, de fazer e/ou rir de piadas com gordos, etc. Acho que a gente precisa se desconstruir e a desconstrução não é só falar: minha melhor amiga é gorda. É se analisar e vigiar o tempo todo, evitando perpetuar esse preconceito.

Lifetime: Qual a sua opinião sobre as musas fitness das redes sociais e o estilo de vida que divulgam ?
Jéssica: Sinceramente, eu não acompanho. Superficialmente, sei que existem pessoas bitoladas com o próprio corpo, fazendo a vida girar em torno da barriga negativa e desta forma, oprimindo quem é ‘fora do padrão’. Vejo algumas pessoas famosas nas redes sociais, que são magras e levam este estilo de vida fitness e que acreditam que para ser feliz você tem que ser magra e isso me dá preguiça, porque né, existem outras coisas. Acho que todo mundo pode ser o que quiser, cultuar o que gosta, enfim, mas acho que quando deixa de ser saudável e vira obsessão, vira patrulha, isso é nocivo.

Um amigo meu diz que “cada um ostenta o que tem de melhor”. Logo, se tudo que uma ‘musa fitness’ tem pra ostentar é o corpo sarado e a dieta dela marcada por peito de frango e batata doce, OK! Eu tenho mais que isso pra compartilhar com o mundo e vou seguir fazendo isso. Não gosto de atacar estilos que não sejam parecidos com o meu. E acho que elas podem ser felizes assim. Ok. Eu preciso de mais que uma barriga negativa pra ser feliz.

Lifetime: Muitas pessoas pensam que os gordos são gordos porque “querem”, ou seja, não possuiriam “força de vontade” suficiente para mudar o estilo de vida (comem ou bebem demais e não fazem exercícios). Qual a sua opinião sobre esse tipo de pensamento?
Jéssica: Só lamento e concluo: algumas pessoas são desprovidas de senso crítico e capacidade de argumentar porque querem! Acho limitador demais. E é o tipo de pensamento que eu mais esbarro por aí. Ser gordo tem a ver com vários fatores e o principal deles é genético. Mas eu tenho preguiça de discutir isso, porque quem pensa assim já se limitou e mostrou que não tem vontade de entender, apenas de julgar e destilar a gordofobia.

Lifetime: Você já passou por regimes e tentou emagrecer? Caso sim, como foi o resultado?
Jéssica:  Já sim. Eu já passei por diferentes tipos de dietas, das mais malucas às mais saudáveis, chamadas de reeducação alimentar. O resultado foi: passei fome, vontade, fiquei doente, mas consegui emagrecer. E depois dos 20 anos, comecei a pensar: quero ser magra para atender ao padrão social ou quero ser feliz? Optei pela segunda resposta.

Lifetime: Quando e como você aceitou seu corpo?
Jéssica: Quando eu percebi que ser gorda não tinha a ver com meu esforço, mas com a minha genética. Quando eu entendi que para ter um corpo ‘aceitável’, porque magra eu nunca vou ser, eu teria que me sacrificar absurdamente, nunca mais comer as coisas que eu gosto – e vale pontuar aqui que eu tenho uma alimentação saudável e equilibrada, acompanhada por nutricionista, sim – viver fazendo exercícios e sofrendo dia a dia, contando calorias. Não é o tipo de vida que eu gosto, que eu quero. Eu gosto de tantas outras coisas que não incluem malhar oito horas por dia e comer apenas alface. Eu quero outras coisas, quero viver outras coisas, gastar meu tempo de outra forma e pra isso, eu aceitei meu corpo. Parei de tentar atender a um padrão que é inalcançável, porque eu se eu for magra, vão me cobrar porque eu não sou loira, se eu for loira, vão dizer que meu nariz é grande, que eu tenho varizes, entre outras coisas. O mundo é cruel e cobra um padrão inalcançável. Quantas mulheres você conhece que se dizem 100% satisfeitas com seus corpos? São raras, não é. A maioria está perseguindo algo que nunca vai alcançar, porque é impossível agradar a patrulha dos corpos perfeitos, mas se você se agradar, se você conseguir levantar todos os dias, olhar no espelho e pensar: sou bonita assim. Eu me amo assim. Pronto. Nada que disserem vai te ofender, porque você se gosta. E é o que eu sinto e faço.

Lifetime: Você, como jornalista, faz qual avaliação da linha editorial de moda e beleza adotada por portais e revistas femininas? Qual é a responsabilidade destes profissionais no processo de formação para um imaginário de padrão de beleza e consumo das mulheres?
Jéssica: De verdade, eu não acompanho revistas de moda e/ou femininas. Eu sou muito adepta de publicações independentes, como a revista digital Az Mina e também da impressa Fala Guerreira, que falam de coisas que realmente me importam como mulher e onde encontro identificação. Nunca gostei das publicações de moda e afins, porque nunca me vi representada. Quantas mulheres gordas ou negras você já viu na capa destas revistas? Eu não me recordo de nenhuma. E se por acaso saiu, foi tratando como algo exótico. E não somos exóticas, somos reais, como sua vizinha, sua amiga, sua colega de trabalho.

Antes de ser jornalista, sou mulher, e como mulher, estas publicações não me contemplam. Não gosto da linha editorial, dos padrões eurocêntricos e inatingíveis que vendem. Igual um catálogo da C&A que uma vez mexeu tanto numa foto da Preta Gil que ela ficou magra e branca. Poxa, ela é gorda e negra, sabe? Por que mudá-la? E mais, estas revistas, quando trazem alguma modelo ‘plus size’, trabalham com mulheres que são apenas mais curvilíneas, mas não são gordas. Já reparou como elas não tem barriga? Como a cintura delas é fina? Como o corpo delas é igual o de uma modelo anoréxica, só que com curvas? Eu não me sinto representada e, pra mim, representatividade é o que importa.

Estas revistas vendem o padrão inatingível que eu falei anteriormente. Mas não apenas elas, os sites, as revistas digitais, as redes sociais, a TV, o rádio. O mundo todo é patriarcal, e é parte desse ‘sistema’ fazer com que a mulher se sinta mal, se sinta diminuída, se sinta infeliz com o próprio corpo e movimente financeiramente toda uma indústria que fatura em cima disso, desde remédios – antidepressivos – a beleza. Sem falar na funerária, porque muita gente morre vítima dessa pressão estética.

É tudo muito sutil, e quando eu coloco assim, pode parecer conspiratório, mas, estar no lugar de oprimido te faz perceber isso.

Lifetime: O que muda na sua vida depois de tudo isso o que aconteceu (da pichação)?
Jéssica: Na verdade, a única coisa que mudou é que minha voz foi ampliada pra falar mais sobre gordofobia. Durante alguns dias, alguns veículos debateram isso e é positivo, mas na minha vida pessoal, nada é alterado. Tô contando as moedas pra comprar tinta pros amigos do graffiti fazerem uma pintura no muro, continuo trabalhando bastante, continuo gorda...rs

Lifetime: Surgiu algum tipo de convite bacana para algum projeto?
Jéssica: Surgiram muitos convites no calor do momento, muita gente chamando pra documentário, pra ensaio fotográfico, oferecendo tratamento com personal trainer gratuito (e é preciso lembrar as pessoas o tempo todo que eu sou gorda mas estou bem assim, saudável e não quero emagrecer), entre outras coisas, mas nenhuma proposta se concretizou. Nada saiu do campo do imaginário. No mais, sigo com meu projeto Margens que é meu projeto de mestrado também, que tenta responder, na prática, quem são as mulheres da literatura marginal/periférica e com elas e suas poesias aparecem temas ligados à gordofobia.

Lifetime: A pichação vai virar uma obra de arte? Como anda esta ideia?
Jéssica: Estou juntando uma grana pra comprar a tinta pra alguns amigos fazerem graffiti no muro. Deve acontecer nas próximas semanas.

Lifetime: Li que você também tem um grande envolvimento com o movimento hip-hop, o feminismo e é produtora cultural, certo? Poderia fazer um resumo do que faz e sua carreira?
Jéssica: Quando eu tinha 14 anos, eu conheci o hip-hop e posso dividir minha vida em antes e depois. Foi depois que decidi que seria jornalista, que passei a militar, que encontrei o feminismo na Frente Nacional do Hip-Hop, que passei a trabalhar com grupos e artistas de rap, entre outras coisas. É uma trajetória longa e linda. São 16 anos de envolvimento. Foi aí que me tornei produtora cultural também. Neste momento eu estou focada em terminar o mestrado e tocar o Margens, que tem foco na produção literária feminina.

Lifetime: Na sua opinião, o que falta para as mulheres se unirem de uma vez por todas contra certas "ditaduras" da moda e dos padrões impostos pelo mercado?
Jéssica: Isso é tão difícil, né? Na teoria, é tudo muito bonito, o feminismo prega igualdade, sororidade, etc., mas quando outra mulher está em apuros, são poucas que vão em auxílio, mesmo assim, acho que os movimentos que se formam, mesmo que pequenos, e que se propõem a discutir coisas do tipo, sejam padrões estéticos, seja machismo, seja gordofobia, seja racismo, acabam por puxar o gatilho de coisas maiores. Acredito que o esforço individual vai para o coletivo. Se eu combato a gordofobia no meu dia a dia, não deixo passar a frase pichada no muro, discuto isso sempre que posso, estou atuando, certo? Se outras mulheres sensíveis a esta, ou outras causas ligadas às opressões, passarem a militar, ler, se informar, compartilhar, olhar as mulheres mais como iguais, com mais empatia, e menos como rivais, como o patriarcado impõe, vamos rompendo com estes ciclos.

Texto: Ana Letícia da Rosa
Imagem destaque: Acervo Pessoal/Facebook