Fanatismo: entre a admiração saudável e obsessão doentia
Os psicólogos concordam: o fanatismo nem sempre é uma coisa ruim. O estado de admiração obsessiva por algo ou alguém faz parte do processo de amadurecimento e, durante a adolescência, geralmente significa uma busca por referências exteriores à família - aquela fase em que vamos nos descolando da ideia de perfeição atribuída a nossa família nuclear e passamos a tentar descobrir quem somos, procurando ídolos para nos espelhar e grupos para pertencer.
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Ser fã costuma proporcionar bem-estar e esse sentimento de pertencimento, de estar ao lado de pessoas que pelo menos um ponto em comum têm com você: o objeto de idolatria. Fazer parte dos chamados fandoms costuma ser uma experiência divertida, gratificante e escapista, unindo pessoas e estimulando com que elas mesmas criem seus próprios trabalhos também, seja de forma direta - através das fanarts, fanfics e edições de vídeo que usam os elementos da obra ou imagens do artista para criar aquilo que se gostaria de ver -, seja na busca por criar um trabalho completamente original e autoral, ainda que algumas vezes esse trabalho possa se revelar uma cópia ou pastiche.
De minha parte, passei toda a adolescência e início da vida adulta sendo fã: começou com as Spice Girls, que me apresentaram a um conceito rudimentar de feminismo, depois passou para a Alanis Morissette, de quem sou fã até hoje - inclusive dei seu nome à minha filha. Em meus anos de fã fervorosa, desenvolvi minhas habilidades de tradução e escrita, descobri novos artistas e fiz grandes amigos, alguns próximos até hoje. A série britânica da BBC Sherlock me apresentou um universo completamente novo: o nerd. Estando em uma depressão séria, foi através do programa que consegui encontrar alguma motivação para fazer algo diferente; no caso, uma página no Facebook e um blog para traduzir entrevistas, em uma época em que Benedict Cumberbatch ainda não fazia parte dos noticiários por aqui. Essa atividade me colocou em contato com pessoas do mundo inteiro e, mais uma vez, fiz grandes amigas, parceiras com quem marco encontros, organizo eventos, discuto estratégias e que, talvez sem que saibam, trouxeram uma leveza à minha vida que há muito havia sido perdida.
Minha obsessão no momento é o Radiohead. Não que seja necessariamente uma novidade, já que sou fã da banda há mais de quinze anos. Como escrevi no meu blog em maio, pouco depois do lançamento do novo álbum, já fazia muitos anos que eu não me interessava tanto assim pelo trabalho deles, me contentando em ouvir as canções que já ouvia desde sempre. Mas desde que "A Moon Shaped Pool" saiu, a magia aconteceu: fui revisitar os álbuns antigos, os vídeos antigos e procurar as entrevistas que eu não tinha lido. Me tornei aquela fã que não tinha sido durante todo o tempo em que me contentava somente em apreciar as músicas, achar o Thom Yorke sexy e o Jonny Greenwood um prodígio. Resolvi fazer parte dos grupos, acompanhar cada show da turnê e cada depoimento dos fãs sortudos que conseguem encontrar a banda pelo mundo afora. Todos os dias acordo com uma música diferente na cabeça, o que me leva a ouvir tudo de novo e passar a gostar de músicas as quais eu não gostava tanto assim antes, em um ciclo que já vem durando três meses e ainda não encontrou seu fim. E se essa é uma admiração praticamente solitária, no sentido de não produzir material para outros fãs ou fazer amigos, por outro lado, minha criatividade vem aumentando significativamente, como se as músicas tivessem o poder de acessar e movimentar alguma área em meu cérebro que estava adormecida pela falta de estímulo.
Mas é claro, a idolatria também tem o seu lado negativo. A saber: o tempo de vida perdido em pesquisas e discussões inúteis - para não falar sobre filas, esperas e perseguições (atividades das quais nunca fui adepta); o dinheiro fora do orçamento, investido em viagens, ingressos e produtos; o assunto único, repetitivo, cansativo; a paixão cega e a falta de senso crítico. A idolatria em seu aspecto mais obscuro e idiotizante, aquele que faz o colunista Régis Tadeu declarar que "todo fã é um idiota", e não sem alguma razão.
Recentemente, o site que edito sobre a série inglesa foi atacado por fãs que não aceitavam que nós tivéssemos traduzido uma entrevista em que os criadores afirmavam que não iria acontecer o relacionamento amoroso entre os protagonistas, algo que determinados fãs acreditavam de forma tão fervorosa a ponto de investir uma enorme quantidade de tempo e energia em uma autodeclarada teoria da conspiração. As mensagens variavam entre acusações de omissão de posicionamento a coisas mais sérias, como chamar a equipe de homofóbica ou imaginar que estaríamos em uma investida contra as chamadas shippers (pessoas que extrapolam as obras e criam suas próprias histórias com os relacionamentos que gostariam que virassem realidade). Isso não foi nada perto das mensagens de ódio que o roteirista da série, Mark Gatiss, recebeu - entre elas, havia uma garota dizendo que ele deveria morrer engasgado com o pênis de seu marido. O tipo de assédio moral a que muitos artistas estão expostos quando interferem na devoção religiosa de seus fãs. Quando a paixão cega obscurece o discernimento e os limites são ultrapassados, o fanatismo pode ter consequências graves: a desenvolvedora de games Jennifer Hepler recebeu ameaças de morte tão sérias quando incluiu personagens LGBT em "Dragon Age II", que não apenas deletou sua conta no Twitter, como ainda precisou colocar vidros à prova de balas em suas janelas. "Quando começou, eu estava achando graça, mas a coisa ficou louca de forma muito rápida", contou ela durante a Comic-Con de San Diego este ano. "Estavam fazendo ameaças terríveis. Estavam fazendo ameaças contra meu bebê que me deixaram horrorizada".
Ainda que o fanatismo em si não seja considerado uma doença, ele pode funcionar como forma de manifestação de uma psicopatologia. Mark Chapman, que entrou para a história como o fã que assassinou John Lennon, foi posteriormente diagnosticado como esquizofrênico, demonstrando que o seu fanatismo pelo músico se tratava de uma manifestação da doença. Segundo o psicanalista Jorge Forbes, a linha entre um fã doentio, capaz de atos extremos, e um fã normal é tênue, e difícil de se identificar em um primeiro momento. Segundo contou à Folha, uma das diferenças pode estar no fato de que o fã doentio não quer dividir seu ídolo: "Geralmente quem faz esse tipo de ataque não pertence a nenhum fã clube. Quem pertence a fã clube não mata seu ídolo. Roberto Carlos é inteligente de dar a rosa do final do show. Aí, pegam a rosa, e não ele."
Renata Arruda é jornalista de cultura e especialista em mídias socais. Mantém
um blog sobre livros no Huffington Post Brasil e assina o Prosa Espontânea.
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