Inicio

"Faça com que eles calem a boca": os ataques à Leslie Jones e o mal contido no comportamento de grupo

Momento Lifetime
Por Lifetime Brasil el 23 de July de 2022 a las 00:30 HS
"Faça com que eles calem a boca": os ataques à Leslie Jones e o mal contido no comportamento de grupo-0

No dia 18 de julho as memórias do Facebook me lembraram que em 2011 eu havia postado uma citação do psicanalista Contardo Calligaris em meu perfil. Foi algo que ele havia falado durante a FLIP: "Quando desistimos da nossa singularidade para descansar no comportamento de grupo, aí está a origem do mal. O grupo, para mim, é o mal". Essa foi uma daquelas citações que resumem algo que sempre senti, mas que ainda não havia parado para formular direito. Sempre fui o tipo de pessoa que procurava se manter transitando por todos os grupos da escola, sem fazer parte de nenhum, por exemplo. E todas as vezes em que tentei participar ativamente de algum grupo, fosse ele um fã-clube, um grupo religioso ou um grupo de militância, me desiludia rapidamente com os bastidores: brigas entre egos descontrolados, hipocrisia, motivações pessoais, abusos de poder, silenciamento de discordâncias, exclusão daqueles que agem de formas que o grupo não aprova ao invés de promover a compreensão e inclusão etc. Ler que 'o grupo, pra mim, é o mal' fez todo o sentido. Incorporei esta parte na minha vida e jamais me esqueci. O Facebook me mostrá-la novamente, neste momento em particular, pareceu quase um aviso para mim, um reforço para que eu jamais me esqueça do quanto diluir a si mesmo dentro de um grupo e atuar como manada é um grande mal. Um mal que vemos diariamente nos dias de hoje através das redes sociais e cujas consequências podem ser arrasadoras.

 

ASSISTA ESTA QUARTA, 20, ÀS 22H, JOGO DE ASFIXIA, NO LIFETIME MOVIES.

 

No mês passado, eu vi de perto uma amiga, a roteirista Petra Leão, ser amplamente assediada após uma imagem da revista Turma da Mônica Jovem, em que a Mônica dizia a frase feminista "meu corpo, minhas regras", viralizar e ir parar em páginas de direita que acusaram a publicação de fazer apologia ao aborto sem nem mesmo procurar saberem o contexto da situação. O assédio se deu através de dois grupos diferentes: os jovens antifeministas "engraçadinhos" das redes, e sua tática de xingar, fazer piada, expor montagens de fotos, prints e tudo mais que puderem para ridicularizar e agredir alguém cuja visão de mundo é oposta à sua, e adultos de extrema-direita que souberam do quadrinho através da página de Olavo de Carvalho e, com a visão nublada pelo fanatismo, enxergaram "doutrinação esquerdista" e "defesa de assassinos" por parte da revista, em comentários tão delirantes quanto preocupantes (eu não sabia que existia gente contra o ECA, por exemplo). E tudo o que a Mônica queria é poder decidir se colocava ou não aparelho nos seus dentes - sua marca registrada. Tenha a opinião que se tiver a respeito do aborto, e do feminismo em geral, com dois minutos de reflexão uma pessoa é capaz de perceber o que está em jogo quando uma frase desta é impressa em uma revista jovem e de grande circulação: é sobre a importância de se manter sua própria individualidade, sobre a importância de não permitir abusos (é sempre bom lembrar que crianças e adolescentes são as maiores vítimas de agressões físicas e assédios sexuais) - é, no contexto da história, justamente sobre a importância de não se curvar ao que um grupo quer que você faça e assumir a responsabilidade de escolher o que você acha que é melhor para si. A reação dos ataques feitos em manada, tanto de quem não queria perder a piada quanto quem está em uma batalha contra uma imaginária doutrinação esquerdista, provam que Calligaris estava certo quando escreveu para a Folha em 2005 que "o grupo potencializa o que há de pior em alguns de nós. Sentir-se reconhecido pelos 'compadres' é uma razão suficiente para esquecer-se de inibições e freios morais básicos".

 

Um mês após o assédio sofrido por Petra, fico sabendo que a atriz Leslie Jones, uma das novas Caça-Fantasmas, deixou o Twitter depois de ter a bravura de retwittar algumas das diversas mensagens de ódio que recebeu por simplesmente fazer o seu trabalho. Muito antes da estreia os fãs misóginos, escorados na frágil justificativa de que um elenco feminino "arruinaria" suas memórias de infância (Freud deve explicar), já estavam protestando e se reunindo para avaliar negativamente o longa no YouTube e em sites de filmes, mas agora que o filme estreou e está recebendo muitas críticas positivas, o ódio acabou encontrando um meio de se manifestar de forma ainda mais cruel: mirando naquela que parece o alvo mais vulnerável. Sendo uma atriz negra, a maior parte das mensagens era de cunho racista, além de misógino, comparando a atriz a macacos ou montagens suas com o rosto cheio de esperma - um clássico homem-coloca-a-mulher-em-seu-lugar. O que é de partir o coração nesta história toda é que com este filme a atriz estava realizando um sonho profissional: sabemos que não são muitas as oportunidades para negros na sociedade em geral, e há pouco tempo Jones estava em um programa de TV falando justamente sobre como nunca é tarde para se alcançar o sucesso. Chocada com as mensagens, ela desabafou em seu perfil*: "Só tento fazer o meu trabalho do melhor modo possível. (...) É como quando você pensa 'Ok, provei meu valor', mas aí alguém vem e te acerta com uma marretada de ódio. Estou sem ação". Mais uma vez, o poder da massa. O que nas redes ainda conta com dois agravantes: o anonimato e a distância, que levam à impunidade e à total desinibição total.

 

Embora admitisse estar em lágrimas, Leslie Jones não se deixou vencer, chamando atenção para algo importante: não há nada de superior em ficar calado e se fingir de indiferente. É necessário expor seu agressor. "Temos que fazer as pessoas sofrerem as consequências do ódio que espalham. Temos que brigar por isso. Bloqueie os filhos da puta, mas jogue na cara deles que eles são racistas e estão disseminando o ódio", desabafou ela, completando: "Parem de dizer para ignorá-los, ou que as coisas simplesmente são assim. Parem de deixar que eles se safem com sua ignorância. Faça com que eles calem a boca. Não deixe que eles falem mais alto. Há mais amor do que ódio, mas eles são mais barulhentos. Fodam-se eles, vamos fazer mais barulho. Vocês me dizem que somos incapazes de acabar com esse ódio. Não acredito nisso."

 

Voltando a Calligaris, em seu artigo "Antes sós do que (mal) acompanhados?", ele defende que o que levaria uma pessoa a sacrificar sua individualidade e participar, por exemplo, de genocídios, é menos a convicção ideológica ou um medo de possíveis punições e mais o fardo imposto pela noção moderna de indivíduo -- se antes os papéis de cada um estavam bem definidos pela tradição, hoje a liberdade e a multiplicidade de escolhas faz com que as pessoas não tenham mais certeza sobre quem são e o que realmente querem. Dessa forma, um sujeito pode se deixar levar pela "ilusória impressão de 'saber' quem ele é e quais são suas tarefas (...)  para ganhar o 'conforto' de sentir-se parte eficiente de um grupo". Isso, então, significa que a influência do grupo funcionaria como uma justificativa para o mal comportamento? De jeito nenhum. Para o psicanalista, "a sedução do grupo não constitui um atenuante. Ao contrário, a covardia que leva alguém a trocar sua humanidade pelo conforto coletivo é um agravante". Segundo ele, o único grupo que, supostamente, estaria a salvo seria a família, mas hoje já se acredita que a família é também a fonte originária da loucura e da neurose.

 

Para lidar com o paradoxo, Calligaris deixa uma questão interessante: ao lidar com famílias ou casais, em vez de explorar os problemas de cada um nesses grupos, ele diz propor uma pergunta que eu creio que possa ser estendida para qualquer pessoa dentro da boa parte de grupos: "o que você estima estar ganhando na convivência com o outro?". Se não resolve a questão, explorar o que leva cada um a desejar fazer parte e receber a aprovação de cada grupo específico me parece um bom ponto de partida.

 

*A tradução das mensagens de Leslie Jones são de JM Trevisan.

 


Renata Arruda é jornalista de cultura e especialista em mídias socais. Mantém 
um blog sobre livros no Huffington Post Brasil e assina o Prosa Espontânea


TWITTER: @renata_arruda
INSTAGRAM: prosaespontanea