É preciso lembrar: mulheres psicoatípicas também sofrem abusos
Ariadne foi encontrada morta, após deixar uma mensagem perturbadora em seu perfil do Facebook. Em seu texto, Ariadne denunciava o assédio ininterrupto que vinha sofrendo por parte de um procurador e seu professor. Não se pode afirmar com certeza, mas a impressão que fica é a de que o assédio deixou Ariadne paranoica. Ela afirmou em seu texto que já sofria de outros problemas pessoais, não fica claro de que natureza, e utilizava os estudos como instrumento para lidar com eles e superá-los. A impressão que dá é a de que todo o estresse que vinha sofrendo com o possível assédio engatilhou um estado de sofrimento psíquico tão insuportável que a única opção que Ariadne vislumbrou para se ver livre disso foi acabando para a própria vida. Ariadne era jovem, recém-formada em direito e sabia que não tinha nenhum poder para enfrentar a influência e o esquema de proteção que acreditava que o professor tinha e teria. Ariadne sabia que a história que ela tinha para contar beirava o fantástico. Ela havia sido diagnosticada com um quadro de depressão profunda por um psiquiatra, e recusou o tratamento. Preferiu mudar de cidade e tentou seguir sua vida, até o momento em que passou a crer que não estaria segura em cidade alguma. Movida pelo desespero, Ariadne tomou sua decisão final parecendo saber de mais uma coisa: ninguém acreditaria nela.
O procurador disse que as acusações de Ariadne eram "coisa da cabeça dela". Ele disse que ela sofria de problemas psiquiátricos. Procurado pela reportagem de um veículo de imprensa, o professor não quis comentar sobre um possível relacionamento extraconjugal com a moça. A outro, negou que este relacionamento tivesse acontecido. Não se pode dizer ao certo o que e até que ponto Ariadne fantasiou o interesse, o suposto relacionamento e a perseguição do professor: é razoável imaginar que ele não chegou ao ponto de grampear o celular da jovem, nem instalar câmeras em sua casa, como ela acreditava. Mas esse não é o ponto. O ponto é que se tem aqui uma mulher psicoatípica, portanto vulnerável, que foi levada ao suicídio após manter contato com um homem que era seu superior. Não apenas isso: este homem, ao receber os e-mails desesperados de Ariadne, acusou-a de perseguição, em uma inversão de predador a vítima. Ficam algumas perguntas: ele disse ter comunicado o episódio "a quem sentiu que devia comunicar". Quem seria essa ou essas pessoas? Por que essas pessoas, ou ele mesmo, não fizeram nada para ajudar Ariadne? Por que não procuraram informar a família dela, por exemplo?
Não deixa de ser um tanto quanto suspeito que um acusado de assédio e perseguição tente parecer a vítima da história. A impressão que fica é a de que tal professor, um advogado experiente, tinha todos os meios para desacreditar e invalidar qualquer denúncia que Ariadne viesse a fazer, baseado no fato de que ela sofria de distúrbios psiquiátricos. O que não está sendo dito é que se o ato de perseguir, também conhecido como stalking (sobre o qual já escrevi aqui), já é perturbador o bastante para levar alguém à instabilidade mental, aliado ao gaslighting (a prática de desacreditar uma pessoa fazendo com que ela creia que está louca), pode ser a mistura perfeita para que uma pessoa já vulnerável se veja aprisionada de tal forma que perca a razão e chegue a atitudes extremas, como Ariadne chegou. E olhando com atenção o relato de Ariadne e as declarações do homem a quem ela acusa, surpreenderia muito pouco se fosse este o caso.
Ao invés de fazer julgamentos, proponho a reflexão deixada pela professoras Giovanna Dealtry em seu perfil no Facebook: "Mulheres que sofrem de algum tipo de transtorno nunca são assediadas. Vivemos em dois mundos paralelos. Em um, mulheres 100% sãs que são assediadas por 'malucos'. Em outro, mulheres 'piradas' que perseguem homens íntegros. O problema é que nos dois mundos quem acaba morta é sempre a mulher."
Renata Arruda é jornalista de cultura e especialista em mídias socais. Mantém
um blog sobre livros no Huffington Post Brasil e assina o Prosa Espontânea.
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