A dor e a delícia de viajar
Patti Smith, cantora e ícone punk, lançou recentemente seu segundo livro de memórias, Linha M, em que aborda o tema da perda, da mudança e do envelhecimento através de lembranças sobre momentos de sua vida. A maior parte de suas histórias envolvem viagens com propósitos inusitados: no primeiro aniversário de casamento com o falecido Fred Smith, ela escolhe visitar Saint-Laurent-du-Maroni, cidade da Guiana Francesa onde funcionava a antiga colônia penal relatada por Jean Genet em Diário de um ladrão. Como o próprio autor nunca teve a oportunidade de pôr os pés no local, a ideia de Patti era ir lá colher um pouco de terra e pedras do lugar para ele. E eles foram, embora ela só tenha podido levar uma pedra para Genet muitos anos depois, quando já estava morto. Patti Smith tem dessas coisas: ela gosta de visitar túmulos dos grandes artistas que admira e agradecê-los por suas obras. Outras histórias de viagens incluem uma participação que não deu muito certo em uma conferência de cientistas, uma visita ao Japão após uma obsessão por Murakami e seu Crônicas do Pássaro de Corda, a oportunidade de sentar na cadeira preferida de Roberto Bolaño ou de deitar na cama de Diego Rivera durante uma visita à casa em que dividia com Frida Kahlo. Os relatos de Patti Smith são tão deliciosos que deixa no leitor a vontade de parar tudo o que está fazendo, pegar uma mochila e sair por aí desbravando o mundo.
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Mas nem sempre essa pode ser uma boa ideia - principalmente se você for mulher e tiver um pouco menos de privilégio. Em um outro bom livro sobre a experiência de viajar, Hoje é o último dia do resto de sua vida, a quadrinista austríaca Ulli Lust conta uma viagem que fez aos 17 anos de sua terra natal para a Itália, sem dinheiro e apenas com as roupas do corpo. Sendo uma adolescente que havia largado a escola para se juntar ao movimento punk, a autora aspirava acumular experiências e conhecer a maior variedade possível de pessoas, pretendendo que a viagem, feita de caronas ao lado de uma amiga que mal conhecia, se tornasse uma grande aventura.
Das pessoas que Ulli encontra ao longo de sua jornada, a grande dos maioria homens são todos muito parecidos, do artista ao político, ao budista: todos encaram as mulheres como seres sem autonomia e poder, meros objetos sexuais disponíveis para satisfazerem seus desejos. Ou se não chegam a tanto, preferem se omitir, como o citado amigo budista que a garota faz em suas andanças, quando se perde de sua amiga, e que decide abandoná-la sozinha à própria sorte com a justificativa de que os olhares de tantos homens deixava o clima "hostil" e "agitado". Ele não dava conta. "Mas eu tenho que dar conta SOZINHA, é?! Idiota! Sou o maldito objeto de cobiça!", pragueja ao lembrar suas palavras. Enquanto ele caía fora deixando ensinamentos hipócritas sobre "abrir o chacra do coração e irradiar amor à sua volta", ela era abusada e estuprada sem que ninguém se importasse. Depois de tantos maus bocados, Ulli finalmente consegue voltar para casa sã e salva.
Talvez a história de Ulli seja um bom exemplo do porquê vemos tão poucas histórias de mulheres que saem em aventuras sozinhas de carona e sem dinheiro pelo mundo, no melhor estilo beat: o que deveria ser uma grande diversão, se transforma em um enorme perigo. O mundo pode ser um lugar bem hostil para mulheres jovens, sozinhas e com pouca grana.
Pessoalmente, não tenho nenhuma história horripilante de viagem. Talvez porque nunca tenha me aventurado a viajar completamente sozinha, meus perrengues são mais banais: a chuva torrencial que alagou a barraca e encharcou todos os pertences no meio de um acampamento; a noite passada na praia por falta de lugar pra dormir; a vez em que os parentes de um amigo se desentenderam e colocaram o grupo todo de mala e cuia na rua em pleno carnaval. Minhas histórias de viagens costumam se resumir a muitas andanças, dinheiro que acaba, comida duvidosa, horas de espera, conduções precárias e malas pesadas. Nada muito drástico.
Pensando sobre isso, fiquei curiosa e resolvi perguntar rapidamente a quatro amigos se eles tinham alguma história inusitada. A Gabriella, que sofre de sonambulismo, me contou que após passear um parque de diversões no Caribe, ela sonhou que estava em uma montanha-russa e acabou sentando na cama com os braços pra cima e começou a gritar - de forma que os seguranças foram chamados para ver o que estava acontecendo. "Meus pais tiveram que explicar que eu era sonâmbula e que estava tudo bem, eles provavelmente acharam que estavam me espancando ou sei lá o quê", disse ela. Nessa mesma viagem, ela relata que a família precisou mudar o nome da "tia Cida" para "Maria", já que Cida se pronuncia da mesma forma que SIDA, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, e os nativos achavam muito estranho que eles chamassem a senhora desta forma.
Já o Rodrigo se lembrou de quando estava visitando a família em Brasília e aconteceu o acidente com um avião da TAM no aeroporto de Congonhas, em São Paulo - no mesmo dia em que ele deveria voltar pra casa. Quando chegou no aeroporto, "eu e meu tio ficamos tentando aparecer em alguma transmissão para que minha avó visse a gente", ele contou, dizendo que o plano não foi bem-sucedido: "Ficamos atrás de uma repórter da Band mas, antes de começar a chamada, ela pediu pra gente se retirar".
Uma verdadeira sucessão de perrengues foi o que passou o Lucas, durante um mochilão pela Europa. Entre as histórias, ele registra o dia em que o grupo alugou um carro na Alemanha, apenas para acabar se perdendo no meio do nada e passar a noite ao relento: "O cúmulo foi quando, depois de dirigir por vários quilômetros, a estrada acabou. Simples assim: chegamos a um ponto onde não havia mais caminho, apenas mato". Já em Paris, "nos deparamos com o pior albergue da história. Eles tinham perdido nossa reserva, então colocaram o Antônio e eu em um lugar que parecia o almoxarifado do local, cheio de entulho". Depois de Paris, o grupo seguiu para Marselha e, de lá, seguiram para Barcelona, em uma inusitada viagem de ônibus: "Quando finalmente conseguimos pegar o tal ônibus para a viagem de 10 horas de Marselha a Barcelona, eu sentei na poltrona e dormi. Acordei, confuso, algumas horas depois. Uma amiga me contou que estávamos parados há uma hora porque a polícia tinha parado o ônibus e o motorista não estava habilitado a dirigi-lo". Certas coisas não acontecem apenas no Brasil.
Mas a história mais potencialmente sinistra foi a da Daniele, e retoma o que eu comentei ali em cima sobre o perigo que correm as mulheres que viajam sozinhas. Para fechar esse texto, segue o relato na íntegra:
"Acho que o maior perrengue foi uma das primeiras vezes que viajei para um Anime Friends de caravana. Estava indo sozinha e tinha comprado um quarto triplo. O casal que ia ficar no quarto comigo pediu para que eu trocasse com a irmã da menina, que devia ter uns 13 anos, para que todos eles ficassem juntos no mesmo quarto. Eu pensei “por que, não?”. E aí eu descobri que ia dividir o quarto com um cara...
Chegando no quarto, vi que tinha uma cama de casal e uma cama de solteiro mas, como ele era muito pequeno, as camas eram coladas uma na outra. Como se fosse uma só. O rapaz era um Otaku simpático, mas meio esquisito. E consideravelmente mais velho. Fomos para o evento e nem me comuniquei com ele. Quando voltamos ao hotel, ele começou claramente a dar em cima de mim e aí eu fiquei muito e muito tensa. Mas eu estava sozinha, não tinha a quem recorrer, e a gente ia dormir naquela mega cama. Ele começou a falar, “pode ficar tranquila que vou ficar aqui do outro lado da cama”, mas eu continuei tensa - até porque ele era aquele tipo de otaku que comprou várias miniaturas de personagens seminuas. Eu até cheguei a colocar um travesseiro entre a gente...Mas obviamente não consegui dormir direito. Fui uma longa e tenebrosa noite fria! Depois eu que acabei fazendo amizade no ônibus de volta e me livrei do cara.
Bem, me livrei nada, porque depois de uma semana ele me mandou um e-mail (que conseguiu pelo Orkut na época) com um textão dizendo que tinha gostado muito de mim, mas que não queria me assustar. Eu disse que não estava interessada e ele mandou mais uns dois e-mails - lembro que em um deles ele falou que vinha para o Rio e queria me ver, dizendo que estava apaixonado...eu precisei dar alguns foras e ignorar outros tantos e-mails para que ele me deixasse em paz. Só anos depois que eu tive noção de quanto isso foi tenso."
Renata Arruda é jornalista de cultura e especialista em mídias socais. Mantém
um blog sobre livros no Huffington Post Brasil e assina o Prosa Espontânea.
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