A dor do outro
Esse mês o Centro de Valorização da Vida, o Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria lançaram pela primeira vez o Movimento Setembro Amarelo, que procura chamar atenção para a necessidade de se falar sobre a questão do suicídio de forma franca, solidária e sem tabus. A ideia é oferecer meios para prevenção de uma atitude tão decisiva, já que, segundo dados oficiais, nada menos que nove entre dez suicídios poderiam ter sido evitados.
Quem sofre de transtornos psiquiátricos ou já se viu em um episódio de profunda depressão, sabe que a perspectiva de se extinguir o sofrimento, a solidão e a sensação de falta de sentido da vida através do encerramento desta é sedutora. O suicídio não é uma atitude covarde e nem egoísta; pelo contrário, a sensação de ser um peso morto na vida das outras pessoas, de ter uma existência completamente inútil e a culpa advindos destes sentimentos é o que geralmente motiva alguém a acabar com a própria vida. Embora não sendo os únicos, a sensação de fracasso e a vergonha de si mesmo costumam ser fatores importantes nesta decisão, muitas vezes tomada em momentos de pleno desespero e desesperança -- em lugares como o Japão, não é incomum a prática entre pessoas que fracassam em suas vidas profissionais, entre outros motivos. Inclusive, diferente de sociedades cristãs que encaram o suicídio como um pecado, para alguns japoneses o suicídio é uma forma de assumir responsabilidades.
Tratar o tema como tabu serve apenas para criar uma áurea de mistério e romantismo trágico sobre ele. No século XVIII, a publicação de “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe, levou à uma onda de suicídios de jovens germânicos. Segundo a autora Socorro Acioly em sua coluna, os jovens de hoje têm banalizado o tema “como se fosse mais uma rebeldia da idade, um gesto de afirmação e sobretudo de coragem. (…) Eles tratam a ideia de se matar como se falassem de algo banal”, escreve ela com inquietação.
Mas antes de apontar os dedos para a pessoa que toma uma decisão tão drástica, é mais importante procurar analisar o que leva alguém a se decidir por este caminho. Em 2012, o escritor Ricardo Lísias publicou o aclamado “O Céu dos Suicidas”, romance baseado no suicídio cometido por um dos seus amigos mais próximos. No livro o personagem Ricardo Lísias, que muitas vezes se confunde com o próprio autor, tenta lidar com a culpa de não ter sido capaz de perceber os sinais e ajudar o amigo, que estava sofrendo de graves transtornos psiquiátricos, e se tornando um estorvo em sua vida ao passar uns dias em seu apartamento.
Um dos motivos para o volume ter sido escrito, segundo Lísias, foi a percepção da crueldade com a qual as pessoas trataram o suicídio de seu amigo. Durante o Paiol Literário acontecido em 2012, ele fez um comentário extremamente pertinente sobre a forma com que se costuma tratar os suicidas:
“Gostaria que as pessoas fossem menos cruéis com os suicidas. Não sei se é isso que eu gostaria que as pessoas lessem no livro, mas o livro foi escrito porque eu achava as pessoas muito cruéis com o meu amigo. (...) Li textos religiosos sobre o suicídio e fiquei muito espantado com o grau de violência com que as religiões tratam os suicidas. Por exemplo, a psicologia está muito mais adiantada nesse assunto do que a religião. Então, nos textos religiosos, que mexem muito com as pessoas, o grau de violência com que os suicidas são tratados é espantoso. Ou o grau de indiferença, as pessoas tentando entender 'como ele fez isso com a gente?', que é uma frase muito falada, 'que absurdo', 'que coisa covarde'. Eu não acho que seja covarde. Pelo contrário, acho que é um ato muito corajoso, muito forte; é um ato de força, às vezes, de violência. Gostaria de um pouco mais de compreensão, talvez. Compreensão não é uma palavra boa, porque não dá para saber os reais motivos do suicida. Talvez de menos violência.”
Dessa forma, campanhas como o Setembro Amarelo se mostram uma iniciativa importante para sensibilizar as pessoas a respeito da dor do outro e mostrar para aqueles que sofrem sozinhos que há uma saída. Apesar disso, nem sempre as ações se mostram adequadas na prática. Uma delas, bastante criticada por profissionais da saúde mental, envolvia o compartilhamento e uma imagem em que a pessoa informava estar à disposição para conversar sobre o sofrimento alheio. Em um primeiro momento, a iniciativa parece bastante sensível e generosa: muitas vezes, o simples ato de desabafar com alguém que se importa pode ser um grande alívio para a dor. O problema é que a maioria das pessoas não está preparada para lidar com a complexidade que são os demônios alheios, e uma escuta displicente, apressada e cheia de lugares-comuns pode ser frustrante para quem procura acolhimento, inclusive tendo o efeito contrário.
Há ainda algumas críticas sobre a legitimidade moral de se encarar o suicídio unicamente como uma questão médica e também de se intervir no desejo de alguém de encerrar a própria vida – para alguns, isso implicaria em uma infantilização e tomada da autonomia do suicida. Sendo o suicídio um assunto complexo, impossível de se generalizar as causas e os comportamentos, acredito que os casos devam ser tratados de forma específica, com cuidado, atenção e sensibilidade caso a caso. E, principalmente, por um profissional.
Eu já passei por uma depressão profunda em que pensava bastante sobre o tema e embora não tivesse a coragem necessária para algo tão irreversível, passei um longo período me deixando perecer. E embora eu não tenha conhecido pessoas próximas que se suicidaram, conheço pessoas que planejaram de fato mas desistiram na hora H. E em todos os casos, o sentimento de solidão, vazio e desespero foi o que motivou essas pessoas, que não avisaram ninguém de suas intenções. Mas davam sinais de profunda dor e o que era possível detectar era o pedido de socorro que havia por trás de suas intenções. Algumas vezes, conseguimos socorrer. Em outras, não. Algumas vezes, mesmo que não consigamos, o suicida em potencial irá decidir viver. Em outras, ele vai preferir encerrar definitivamente o seu sofrimento. Essas pessoas que encontraram forças em si mesmas para continuar, estão em momentos melhores de suas vidas. Mas para algumas outras, em situações muito dramáticas, viver pode ser uma lenta e permanente tortura.
Não existe uma resposta fácil e nem uma resposta única. Mas se é verdade que nove entre dez casos são reversíveis, eu acredito que vale a pena tentar fazer alguma coisa. Parafraseando a autora Jenny Lawson, muitas vezes não entendemos o sofrimento alheio, mas sabemos que o mundo é um lugar melhor com essas pessoas aqui. O que podemos fazer por elas é nos importarmos.
Renata Arruda é jornalista de cultura e especialista em mídias socais. Mantém
um blog sobre livros no Huffington Post Brasil e assina o Prosa Espontânea.
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